"O amor, o conhecimento e o trabalho, são fontes de nossas vidas. Deveriam também governá-los". - Wilhelm Reich







quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Adolescência e Saúde Mental



A SEXUALIDADE E O ADOLESCENTE COM DEFICIÊNCIA MENTAL

Os autores atuais, impulsionados pelo aparecimento da pílula anticoncepcional nos anos 1960, a epidemia de HIV/AIDS e os estudos de gênero no início dos anos 1980, trouxeram novas investigações sobre práticas e representações da sexualidade. Hoje se observa maior flexibilidade em relação a novas práticas sexuais, embora se mantenham alguns valores tradicionais em determinados grupos populacionais(1). Maior liberdade sexual pode ser encontrada em alguns núcleos da sociedade nos quais, por exemplo, a masturbação não é mais considerada perversão, assim como a virgindade não é tão valorizada(4).

Se uma grande parte dos adolescentes é beneficiada por uma visão contemporânea mais libertária da sexualidade, como defende Parker(10), essa não é a realidade para os que têm deficiência mental, pois a maioria não tem sua sexualidade reconhecida. Dessa forma, esses adolescentes integram o senso comum de que não possuem sexualidade ou, quando a têm, essa se manifesta de forma exacerbada e, portanto, necessita de controle.

Glat e Freitas(3) avaliam que esse estereótipo é uma extensão da representação social da deficiência mental, que vê esse indivíduo entre dois extremos: como "um ser demoníaco" ou como "uma eterna criança"(3).

Na adolescência, nos indivíduos com deficiência mental, existe um contraste entre a transformação do corpo infantil em um corpo adulto e a continuidade de uma função imatura no que se refere à cognição, à comunicação e ao domínio social(2). A pouca semelhança com os outros adolescentes sem deficiência pode se acentuar, pois sendo uma época em que se percorre acintosamente o caminho para a identidade adulta, para os que têm deficiência esse percurso não é fácil. A adolescência se prolonga, frustrando muitas vezes as expectativas dos pais e do próprio adolescente(8).

Muitos acreditam que a deficiência cognitiva está associada a um déficit sexual. Isso decorre das poucas evidências sistematizadas da sexualidade de pessoas com deficiência mental devido à maior dificuldade de obtenção de dados por meio de entrevistas(7).

A conduta sexual de pessoas com deficiência mental é variável, visto que depende do nível de seu comprometimento intelectual, do apoio familiar e da estrutura social. Indivíduos com comprometimento intelectual muito importante de modo geral têm uma conduta sexual predominantemente indiferenciada, sem o estabelecimento de relações interpessoais, com o objetivo apenas de satisfação de seus impulsos sexuais. A manifestação de sua sexualidade geralmente restringe-se à manipulação dos genitais. Os que apresentam deficiência moderada podem ter um relacionamento interpessoal, mas sem que existam conteúdos afetivos e culturais que caracterizem uma relação adulta. Aqueles com deficiência mental leve estabelecem relações de amizade, podem ter relações íntimas e, em algumas situações, até mesmo constituir famílias. Contudo deve ser ressaltado que, embora a possibilidade de constituição de família seja referida, não estão disponíveis trabalhos sobre o tema(13).

Para Melo e Rodrigues(9) o estabelecimento de relações sexuais afetivas só atinge aqueles cuja deficiência compromete muito pouco suas competências, pois, geralmente, nessa área eles sofrem interdições de seus familiares e da sociedade em geral. Essas restrições resultam em menor autonomia e poucas possibilidades de escolhas.

Nega-se a possibilidade de que pessoas com deficiência mental possam exercer sua sexualidade de forma plena e prazerosa. A essa negação se incorpora o que foi chamado por Strickler(11) de um "cobertor virtual de silêncio". A sexualidade está presente, mas para que fique "esquecida" é melhor evitar falar no assunto. Considera-se que o obstáculo para uma vida amorosa plena e satisfatória encontra-se pouco associado ao coeficienteintelectual ou ao problema neurológico presente. Essa restrição encontra-se, principalmente, na dependência da infantilização e do isolamento social a que se encontram expostos(3).

Muitas condutas consideradas "desviantes", como masturbação, voyeurismo e exibicionismo, podem ser compreendidas dentro do processo do desenvolvimento sexual. O que se questiona é se os problemas de comportamento sexual observados em algumas pessoas com deficiência mental não estariam relacionados à dificuldade de perceber e interpretar as exigências do meio social, que não coloca com clareza as mensagens que quer passar.

A masturbação é um tema de destaque nas discussões sobre sexualidade e deficiência mental. Merece atenção e orientação o caso em que essa prática se dá de forma compulsiva ou em público, muitas vezes conseqüente a uma educação sexual inexistente ou ineficaz. Nessas situações também deve ser pesquisada a possibilidade de abuso sexual.

Muitos acreditam que as pessoas com deficiência mental são seres assexuados que não irão entender ou necessitar de educação sexual, portanto não precisam recebê-la. Na realidade, vários trabalhos atestam que isso não é a realidade, já que, como afirmado anteriormente, a sexualidade se desenvolve da mesma forma nos indivíduos com e sem deficiência, na grande maioria dos casos(12).


A CONSULTA: ABORDAGEM DOS ASPECTOS SEXUAIS

Na consulta de adolescentes com deficiência mental, questões que promovam sua saúde e que também contribuam para a prevenção de agravos a ela devem ser abordadas. É importante ressaltar que o sigilo médico, quesito tão importante em uma consulta de adolescentes, nem sempre poderá ser respeitado. Portanto, compreendendo a sexualidade como parte integrante da saúde do indivíduo, esse item deve ser contemplado no atendimento, favorecendo assim o desenvolvimento sexual harmônico, e também para que o exercício da sexualidade ocorra na ausência de discriminação, coerção e violência.

Com muita freqüência os pais têm dificuldade em falar sobre o tema, que dificilmente aparecerá espontaneamente na consulta. Compete ao profissionaltrazer o assunto para o debate e, quando possível, incluir os adolescentes na discussão.

A família e a escola seriam os locais mais indicados para o fornecimento de informações e reflexões sobre a sexualidade, pois a educação sexual vai sendo dada diante das oportunidades que se apresentam. Mas o que se observa é que a tarefa não é exercida a contento, muitas vezes existindo a expectativa de que essa responsabilidade seria do médico, que deteria o conhecimento tanto do corpo biológico quanto do erótico.

A efetivação de uma relação sexual nem sempre é a maior preocupação desses adolescentes, sendo o auto-erotismo a prática sexual mais freqüente. Em função dos medos que existem em relação ao onanismo, a repreensão freqüentemente é utilizada como modo de inibir essa atividade, por se considerar que a prática poderia estimular o adolescente a buscar outras formas de satisfação sexual. Aos pais deve ser assegurada que tal atitude é compatível com essa etapa do desenvolvimento.

Entre os dados de anamnese é importante se questionar sobre as manifestações da sexualidade, como a masturbação, e a possibilidade de relação sexual espontânea, assim como reconhecer se a pessoa com deficiência corre o risco de sofrer abuso sexual. Por mais difícil que seja a abordagem do tema, é importante saber se existem familiares com problemas de alcoolismo e/ou uso de outras drogas, visto que esses fatores favorecem a prática de atos violentos.

Embora a deficiência mental por si só não seja um fator de vulnerabilidade ao abuso sexual(5), durante a consulta é importante que se investigue se há fatores de vulnerabilidade associados a essa forma de violência. Entre esses fatores destacamos o uso abusivo de substâncias químicas por uma pessoa que goza da confiança do adolescente, pois freqüentemente a violência é cometida por um dos cuidadores do adolescente com deficiência mental, devido à desigualdade de poder nas relações familiares.

Também é importante que se conheça o nível de autonomia do adolescente. Quanto mais autônomo, maior a possibilidade de que ele estabeleça relações amorosas e até mesmo sexuais. Diante dessa possibilidade, deve-se orientar a contracepção, assim como instruí-lo sobre o uso do preservativo (condom).

A sociedade tem algumas exigências quanto ao comportamento sexual dos indivíduos, portanto a socialização de adolescentes com deficiência mental pode ser dificultada pela exacerbação da impulsividade própria da adolescência, além do seu menor senso crítico. A consulta é uma boa oportunidade para mostrar a eles o que é público e o que é privado. Entretanto, essa compreensão nem sempre é facilitada pelos pais, que raramente garantem sua privacidade, principalmente por insegurança e temor. Além disso, muitos são infantilizados por seus responsáveis. Nessa abordagem deve ser utilizada uma linguagem adequada, conforme o nível cognitivo de cada adolescente.


CONCLUSÃO

As manifestações sexuais de adolescentes com deficiência mental preocupam seus pais e a sociedade, que ora infantilizam essa sexualidade, ora têm o receio de que ela se manifeste de forma socialmente inadequada.

Uma melhor adaptação social interferirá no seu comportamento sexual, que em uma "via demão dupla" favorecerá sua inclusão. Para que isso ocorra, deve ser incentivada a participação em atividades que favoreçam a inclusão social, com destaque para as que promovam a capacitação para o trabalho, o esporte e o lazer. Essas atividades, associadas à freqüência escolar, contribuem para que os adolescentes com deficiência mental adquiram conceitos de responsabilidade e limites, além de melhorar sua auto-estima.

A consulta médica é uma excelente oportunidade de trabalhar essas questões, especialmente as que se referem à sexualidade, desvendando os preconceitos sobre o tema. Nem o Daniel era tão inocente quanto sua mãe imaginava, nem a Gabriela, aparentemente, estava interessada em um parceiro real para conseguir exercer sua sexualidade.

Os pais precisam saber que seus filhos com deficiência provavelmente manifestarão sua sexualidade, seja através da masturbação, do namoro ou até mesmo, em alguns casos, na concretização da relação sexual. Acreditamos que isso contribuirá para que os adolescentes com deficiência não sejam tão reprimidos na expressão de sua sexualidade, podendo vivenciá-la de modo mais satisfatório.


REFERÊNCIAS

1. Arilha M, Calazans GJ. Sexualidade na adolescência: o que há de novo? In: Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD), organizadora. Jovens acontecendo nas trilhas das políticas públicas. Brasília;1998.687-708.

2. Blacher J. Transition to adulthood: mental retardation, families and culture. Am J Mental Ret. 2001;106:173-88.

3. Glat R, Freitas RC. Sexualidade e deficiência mental: pesquisando, refletindo e debatendo sobre o tema. Rio de Janeiro: 7 Letras;2002.

4. Gomes OMB. Eu me perdi! O significado da virgindade para adolescentes. Rio de Janeiro: 1996. Tese de doutorado, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz.

5. Gonzalo O. Maltrato en niños com discapacidades: caracterísiticas y fatores de riesgo. Anal Esp Pediat. 2000;56(3):219-23.

6. Heilborn ML, Brandão ER. Ciências sociais e sexualidade. In: Heilborn MH. (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1999;7-17.

7. Konstantareas M, Lunsky YJ. Sociosexual knowledge, experience, attitudes, and interest of individuals with autistic disorder and developmental delay. J Aut Develop Dis. 1997;27:397-413.

8. Mckinkay I, Ferguson A, Jolly C. Ability and dependency in adolescents with severe learning disabilities. Develop Med Child Neurol. 1996;38:48-58.

9. Melo NA, Rodrigues Júnior OM. Sexualidade e o adolescente deficiente mental. Reprod. 1989;4:19-21.

10. Parker RG. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Best Seller. 1991.

11. Strickler HI. Interaction beetween family violence and mental retardation. Mental Retard. 2001;39:461-71.

12. Tharinger D, Horton CB, Millea S. Sexual abuse and exploitation of children and adults with mental retardation. Child Abuse Negl. 1990;14(3):301-12.

13. Waldman BH, Swerdloff M, Perlman PS. Sexuality and youngster with mental retardation. J Dent Child. 1999;348-51.