"O amor, o conhecimento e o trabalho, são fontes de nossas vidas. Deveriam também governá-los". - Wilhelm Reich







terça-feira, 18 de outubro de 2011

Terror Noturno


O que é ?

Num episódio de terror noturno o indivíduo grita movimentando-se bruscamente numa atitude de fuga. O indivíduo pode sentar-se, levanta ou corre para a porta do quarto como que tentando escapar, aterrorizado, sem poder lembrar-se com o quê. O episódio costuma acontecer na primeira terça parte da noite. Logo após o grito, apesar de aparentemente acordado o indivíduo ainda está numa espécie de transição entre o sono e a vigília. Tentativas de comunicação podem não ser bem sucedidas, o ideal é manter-se calmo e observar a pessoa para que ela não se fira com sua transitória confusão mental dos primeiros minutos após o episódio

Como se caracteriza ?

O aspecto central é o despertar parcial com grito aterrorizado e aspecto de intenso medo, podendo estar com o coração acelerado, respiração ofegante, sudorese abundante e pupilas dilatadas. Entre o grito e o restabeleciemento passam em média dez minutos, durante os quais o indivíduo não responde aos apelos externos. As recordações dos sonho quando existem são fragmentadas. Após o episódio o indivíduo pode voltar a dormir tranquilamente sem despertar nem recordar-se do que houve no dia seguinte.

Generalidades

Assim como o sonambulismo, o terror noturno é comum nas crianças e costuma ceder espontaneamente até os vinte anos de idade. Geralmente nessa faixa etária não é necessária intervenção medicamentosa que fica reservada para os adultos. As medicações empregadas costumam ser as mesmas do sonambulismo: benzodiazepínicos e antidepressivos tricíclicos



quinta-feira, 6 de outubro de 2011

REICH E FREUD: COMPATIBILIDADES E INCOMPATIBILIDADES




1. INTRODUÇÃO

Quando tive contato pela primeira vez contato com o pensamento reichiano e a psicoterapia corporal, em 1993, através de Dulcimar Vieira da Silva Menezes, psicóloga Reichiana que durante muito tempo chamei carinhosamente de "mestra" . Críticas à Psicanálise durante muitos anos era o que acontecia, mas Drª Dulcimar mostrou que as críticas por mais que sejam destrutivas, mas ao fundo era algo que nos fazia alimentar ao interesse psicanalítico. O tempo mostrou que muitas destas críticas à psicanálise eram infundadas, e que a psicoterapia de inspiração reichiana era boa, mas também apresentava limitações e insuficiências. Ocorreu então o que talvez tenha sido uma inversão do processo: da crítica pouco embasada passou-se a uma assimilação pouco crítica da psicanálise, que inclusive desconsidera questionamentos importantes feitos a ela por Reich (ver adiante). Hoje em dia é comum que escolas reichianas (como por exemplo a Psicologia Biodinâmica, a Análise Bioenergética, a Vegetoterapia Caractero-analítica e outras) estudem psicanálise em suas formações, porém a meu ver ainda falta muito para que se chegue a uma síntese teórica e técnica adequada entre os dois campos. No limite, parece que se formos levar a teoria e a técnica psicanalíticas a sério, a coerência nos obrigaria a descartar o pensamento reichiano, como os psicanalistas já o fazem.
Este artigo se propõe a fazer um levantamento dos pontos de convergência e de divergência entre as duas concepções, para que assim possamos discutir melhor o quanto seria possível uma síntese.

2. REICH E A PSICANÁLISE

Wilhelm Reich foi inicialmente um psicanalista que pesquisou e inovou a teoria e a técnica psicanalíticas (Reich 1975, 1995a), notadamente quanto à importância dada aos aspectos somáticos em seu trabalho, e que depois rompeu com a fundamentação psicanalítica e seguiu um caminho próprio.

Ao longo da década de 1930, ele se distancia progressivamente do pensamento freudiano, e sua fundamentação teórica é estruturada cada vez mais no âmbito da biologia, sendo especialmente importante a apropriação do conceito de auto-regulação, elemento-chave de suas novas idéias (Bellini 1993; Albertini 1994, p. 67-71; Dadoun 1991, p. 34-42). Ganha importância também sua própria teoria sobre o papel da bioenergia, o campo de estudos por ele denominado de Orgonomia (Reich 1994, 1984). Segundo Ola Raknes (1988, p. 41-42), “a partir da descoberta da energia orgone cósmica (1939-1940), o principal interesse de Reich concentrou-se nesse novo campo de pesquisa”.

No Congresso de Psicanálise de 1934 (ano em que se dá a sua exclusão da Associação Psicanalítica Internacional), Reich apresentou pela primeira vez suas idéias inovadoras sobre a couraça muscular. O capítulo XIII do “Análise do Caráter” é uma elaboração formal da palestra realizada nesse Congresso. É aí apresentada a tese de que “todo aumento de tônus muscular e enrijecimento é uma indicação de que uma excitação vegetativa, angústia ou sensação sexual foi bloqueada e ligada”, havendo “uma identidade funcional entre couraça do caráter e hipertonia ou rigidez muscular” (Reich 1995, p. 315). Vemos aqui expostas as bases de uma clínica que também ficará cada vez mais distanciada da ortodoxia psicanalítica.

Em dezembro de 1934, Reich faz um balanço da relação entre suas concepções (às quais denominava na época de “psicanálise materialista dialética”) e as de Freud: “me considero o mais sólido representante da psicanálise científica natural e do seu desenvolvimento lógico” (Reich 1979, p. 181).

Em artigo de 1938 (Reich 1979, p. 235-8) já se percebe uma postura bastante diferente daquela de 1934, com Reich vendo-se como estando além da psicanálise. Ele afirma o valor dos processos biológicos e a superioridade das suas formulações em relação às idéias de Freud. Porém ainda reconhece um certo valor na psicanálise no terreno dos processos psíquicos.

Em 1942, quando ele escreve seu livro “A Função do Orgasmo”, dá-se um novo balanço da relação entre suas idéias e as de Freud: “O objetivo do meu trabalho é o mesmo hoje e há vinte anos atrás: o despertar das experiências da primeira infância. Entretanto, o método para consegui-lo mudou consideravelmente; tanto, na verdade, que nem se pode mais chamar de psicanálise” (Reich 1984, p. 58-9).

Em anotação de 1946 (Reich 1999, p. 345), afirma que “Freud confundiu a doença mental que encontrou no vivo com a essência intacta que está por trás dela – isto é, com a vida real. Esse foi seu grande erro. A biologia de Freud é completamente sem esperança”.

No relato clínico que consta como o capítulo XV (A Cisão Esquizofrênica) da terceira edição do "Análise do Caráter", que foi escrito no inverno de 1948-49 (Ilse Reich, 1978, p. 124), percebe-se que o referencial clínico da psicanálise praticamente não está mais presente, exceto quanto a alguma elaboração das vivências transferenciais. A questão das chamadas correntes orgonóticas assume papel central, o uso de técnicas corporais e do acumulador de orgone constituem-se como elementos decisivos do tratamento. Conclui-se que “... a esquizofrenia é uma doença de fato biofísica, e não ‘apenas’ mental (...) as emoções são funções bioenergéticas, e não mentais, químicas ou mecânicas’ (Reich, 1995, p. 406).

Percebemos que Reich vai se deslocando progressivamente para fora do âmbito da psicanálise, tendência que se mostra ainda mais radicalizada em 1952, quando ele é entrevistado por um representante dos Arquivos Sigmund Freud (Reich 1979). Podemos observar aí a consolidação desse processo de mudança, onde percebe-se uma declaração de ruptura e de distanciamento, de ver a relação com Freud e a psicanálise quase como um acidente histórico em sua evolução intelectual:

“Eu já nem sequer me considero um discípulo de Freud. Não tenho nada a ver com ele há muito tempo” (p. 117-8). “Como lhe disse, não estou absolutamente nada interessado em psicanálise” (p. 119).

A psicanálise “para mim é um período completamente morto (...) Os psicanalistas pensam ainda que eu sou um psicanalista. Não! Não!” (p. 97).

“Portanto não se trata de psicanálise. Não tem nada a ver com psicanálise.” (118). “Não sou psicanalista. Não estou interessado em psicanálise. Não tenho qualquer má vontade contra ela – de modo nenhum. Está tudo morto e enterrado” (p. 115).

“Eu coloquei numa base científica natural o que estava correto na psicanálise, mas o meu trabalho metodológico, científico, não tinha em si mesmo nada a ver com a psicanálise, no sentido de fazer parte dela ou de se ter desenvolvido a partir dela. O que eu fiz foi por o meu ovo de águia no ninho de ovos de galinha. Depois tirei-o e dei-lhe o ninho apropriado” (idem, p. 50).

Será que a psicanálise foi apenas um casulo dentro do qual Reich se nutriu e desenvolveu, e com o qual rompeu irreversivelmente para libertar sua bela e grandiosa teoria? Se formos ouvir a opinião dele, parece que sim. Veremos que não é à toa que tais afirmações são feitas: um diálogo entre as concepções de Reich e Freud exigirá realmente um esforço considerável.

3. CONCORDÂNCIAS E DIVERGÊNCIAS

3.1 QUE PARTE DA PSICANÁLISE É COMPATÍVEL COM A TEORIA E A TÉCNICA REICHIANAS?

Podemos começar pela opinião do próprio Reich, que, como já vimos, varia bastante ao longo do tempo. Observemos o período inicial (anos 20 e 30), quando ele ainda considerava-se psicanalista, ou pelo menos alguém com fortes laços com a psicanálise.

Reich desde cedo mostrou-se um defensor de certas idéias de Freud, e manteve-se fiel a elas (ou, pelo menos, acreditava manter-se). Por outro lado, desde cedo também criticou determinados aspectos das formulações de Freud, especialmente muitas das idéias contidas em “Além do Princípio do Prazer”, “O Ego e o Id” e “Inibições, Sintomas e Ansiedade”. Um exemplo é a crítica à teoria da pulsão de morte, em artigo sobre o caráter masoquista publicado sob grande polêmica no Internationalen Zeitschrift für Psychoanalyse em 1932, e depois incluído no “Análise do Caráter” como o capítulo XI.

Isso traz uma implicação importante: pode ser que haja em Reich uma continuidade com a obra de Freud. Mas talvez isso se dê com uma parte da obra de Freud que este próprio, e praticamente toda a psicanálise posterior, considera como uma teoria inicial, em grande parte depois ultrapassada e superada por uma formulação mais exata, mais abrangente e mais adequada . Falamos aqui da segunda tópica, da teoria da pulsão de morte, das últimas concepções sobre a ansiedade e a cultura.

Alguns comentadores reichianos parecem compartilhar deste ponto de vista, afirmando que Reich prosseguiu num caminho que Freud iniciara e do qual desviou-se depois. Segundo Boadella (1985, p. 19), o ponto de vista da teoria da libido “foi relegado a um abandono progressivo tanto por Freud quanto por seus colegas. A Reich coube a tarefa de se dedicar a essa teoria inicial, de confirmá-la e de desenvolvê-la”. Este autor comenta que, “na psicanálise, um abismo profundo começava a se abrir entre a teoria geral do instinto, centrada no conceito de energia psíquica, e as novas teorias da psicologia do ego, centrada no conceito de estrutura psíquica” (idem, p. 25).

No mesmo sentido, Chester Raphael assinala que Reich chegou à psicanálise entusiasmado com a idéia freudiana de uma energia sexual, mas que a essa altura era já “claro que sua [de Freud] teoria da neurose tornara-se uma teoria psicológica, e que a libido, privada de sua definição sexual original, tornara-se nada mais do que uma metáfora inócua agora à beira da extinção” (Raphael 1975, p. viii).

Conforme Paulo Albertini (1994, p. 55), “observando de forma geral a atuação de Reich no movimento psicanalítico, é possível dizer que ele tentou criar uma outra ‘psicanálise’ dentro da própria psicanálise. Para ele, as suas formulações teóricas, e não as de Freud dos anos 20, é que representavam o desenvolvimento necessário das primeiras elaborações freudianas”; dado que “na visão reichiana, a psicanálise dos anos 20 afastou-se do conceito de libido e passou a tomar rumos equivocados” (idem, p. 38).

Cláudio Wagner (1996, p. 56-57) propõe a tese da existência de um “jovem Freud”, do qual Reich teria feito um resgate e uma reatualização. “Jovem Freud” seria aquele que, de 1898 a 1938, continuou sustentando a importância da sexualidade, do inconsciente, do papel do ambiente externo nas neuroses. Segundo este autor, “a psicanálise que sobreviveu foi a psicanálise que, ou bem privilegiou o velho Freud, da pulsão de morte (escola inglesa, M. Klein), ou bem se esqueceu do jovem Freud das pulsões sexuais (escola americana, psicologia do ego)” (idem, p. 60).

Ou seja, mesmo onde Reich é compatível com as idéias de Freud, há uma ruptura no sentido de que a psicanálise de Reich não é a mesma dos psicanalistas atuais.

Uma retomada das raízes freudianas na psicoterapia reichiana necessariamente terá de passar por alguns questionamentos:

a) Continua válida a crítica de Reich aos textos de Freud mencionados?

b) Se não, o que deve ser corrigido e/ou acrescentado em Reich?

c) Se sim, quais partes da teoria psicanalítica seriam assimiláveis pela psicoterapia corporal? Quais não o seriam?

Esta é uma discussão em aberto. Pessoalmente, acredito que existem muitos elementos valiosos na produção freudiana dos anos 20 e 30, e nos autores que desenvolveram posteriormente estes pontos de vista. Por exemplo, Melanie Klein (1997, 1996, 1991) e Donald Winnicott (1990, 1978, 1975) trouxeram contribuições originais à teoria e à técnica, e o diálogo com a produção destes e de outros autores pode contribuir grandemente para a ampliação dos horizontes da psicoterapia reichiana, como podemos ver por exemplo em Cornell (1998).

3.2 COMO REICH LIDOU COM A HERANÇA FREUDIANA?

Desde o início Reich revelou-se um pensador original. A primeira teoria de Reich (o papel do orgasmo, formulada por volta de 1923 – ver Reich 1975d) foi um prolongamento da teoria da libido de Freud e, ao mesmo tempo, a primeira separação em relação ao mestre (Bellini 1993, p. 58). Reich relata sua desilusão em 1926 com o fato de Freud rejeitar suas idéias sobre a relação entre angústia e o sistema nervoso autônomo (Reich 1984, p. 147-148). A técnica de análise do caráter propunha um papel mais ativo e intervencionista do analista, que era muito diferente do habitual. O questionamento da separação entre neurose atual e psiconeurose pode ser visto já como um primeiro movimento de Reich para integrar corpo e mente numa unidade conceitual (Reich 1995, p. 26-27). Portanto, percebe-se que há elementos de ruptura desde o princípio, e que nunca houve um Reich totalmente alinhado com as concepções psicanalíticas dominantes e que assimilasse docilmente as formulações de Freud.

Parece haver um padrão: as teorias e técnicas de Reich começam formuladas coerentemente dentro da psicanálise. Porém, aos poucos vão se desenvolvendo, ampliando, tomando forma própria, até tornarem-se algo decididamente fora do âmbito do que é reconhecido socialmente como psicanálise. Isso ocorre com as intervenções corporais (primeiro a criação da análise do caráter, depois esta levando à concepção de uma couraça muscular do caráter, e isto tendo como conseqüência a invenção de métodos para uma abordagem somática do tratamento), com o conceito de bioenergia orgone (descendente da teoria da libido de Freud), com as formulações sobre o orgasmo (oriundas da teoria freudiana da sexualidade).

Segundo este padrão, Reich não seria exatamente um continuador da psicanálise, e sim alguém que usou–a como um dos ingredientes na formulação de algo mais complexo, como uma maçã utilizada para fazer tortas de maçã, ou a tinta utilizada para pintar um quadro.

Há entretanto uma certa continuidade que vai permitir a Reich dizer-se continuador de Freud mesmo em 1952, quando suas formulações são já bastante diferentes daquelas do antigo mestre: “Sabe quem tem mantido a teoria da libido viva e em funcionamento, atualmente? E quem a desenvolveu? Considero-me o único que fez isso. Mais ninguém” (Reich 1979, p. 115). Este é um aspecto curioso da relação de Reich com Freud: parece às vezes que Reich julga-se mais freudiano do que o próprio Freud, apesar de ser visto pelos demais continuadores da obra freudiana como alguém que não tem mais nada a ver com a psicanálise em suas idéias e práticas.



3.3 REICH: UM PSICANALISTA QUE DIVERGE DE FREUD

Segundo Bleichmar e Bleichmar (1992, p. 17), “a teoria psicanalítica cresceu, a partir de Freud, por aposição de uma grande quantidade de escolas, correntes de pensamento, grupos, autores, cada um com seu enfoque particular sobre quase todos os problemas. Poderíamos dizer que, neste momento, não há uma psicanálise, mas muitas”. Seguindo esta linha de pensamento, algumas das diferenças entre as formulações de Reich e Freud podem ser entendidas como divergências entre escolas psicanalíticas. Ou seja, há uma parte da teoria reichiana que, apesar de divergir de Freud, poderia ser vista como ainda ligada ao referencial psicanalítico, como ainda podendo posicionar-se enquanto interlocutora dentro deste campo do conhecimento.

3.3.1 A PULSÃO DE MORTE

O conflito teórico mais conhecido, e que é comumente tido como o fator que levou à ruptura entre ambos, está relacionado com a polêmica sobre a idéia da pulsão de morte. Entretanto, diversos elementos nos levam a pensar que a exclusão de Reich do movimento psicanalítico deu-se muito mais por motivos políticos do que por divergências teóricas (Wagner 1996). Basta lembrar que Donald Winnicott, que também repelia a idéia de pulsão de morte, nunca se afastou do movimento psicanalítico, chegando inclusive a presidir a Associação Psicanalítica Internacional. E ele deixava claro seu ponto de vista: “Nunca fui capaz de seguir quem quer que fosse, nem mesmo Freud ... Por exemplo, simplesmente não acho válida sua idéia de instinto de morte” (Winnicott, 1990, p. 161).

Ernest Jones, respeitado biógrafo de Freud, diz que “algumas das formulações mais abstratas de Melanie Klein serão sem dúvida modificadas na estrutura teórica futura da psicanálise. O que me parece um exemplo provável disso é a aplicação direta que faz às descobertas clínicas do conceito filosófico de Freud de uma ‘pulsão de morte’, sobre o qual tenho sérias dúvidas. Cito-o não por esta razão, mas porque acho um pouco estranho que eu devesse criticá-la por uma adesão demasiadamente fiel aos pontos de vida de Freud” (Jones, 1991, p. 368. Em outro texto, Jones (1989, p. 278) reafirma sua opinião, dizendo que “nenhuma observação biológica apóia a idéia de uma pulsão de morte, que contradiz todos os princípios biológicos”.

Otto Fenichel, em sua exposição da teoria psicanalítica, dedica duas páginas a uma “Crítica do Conceito de um Instinto de Morte” (Fenichel, 1981, p. 53-55), onde enumera argumentos contra tal idéia. Apesar de reconhecer a existência de conflitos entre os interesses do ego e os impulsos sexuais, e entre a agressividade e as tendências sexuais, afirma que “não é necessário presumir que nenhum desses dois pares de opostos representem dicotomia genuína e incondicionada que haja operado desde o início. Para melhor classificar os instintos, teremos de esperar que a fisiologia desenvolva teses mais valiosas a respeito das fontes instintivas” (idem, p. 55).

Ora, se psicanalistas prestigiados como Fenichel, Jones e Winnicott discordaram abertamente da teoria da pulsão de morte sem deixarem de ser aceitos pela comunidade psicanalítica, pode-se supor que, se fosse apenas por este aspecto de suas idéias, talvez pudéssemos reivindicar para Reich um lugar como o de Ferenczi no panteão psicanalítico, algo como um psicanalista “diferente”. Isso não minimiza a questão teórica, pois Freud manteve até o fim sua crença na idéia de uma pulsão de morte como algo essencial para a compreensão da mente humana. Uma integração entre as concepções de Freud e Reich nunca estará completa sem um esclarecimento desta divergência.

2.3.2 A TEORIA DO ORGASMO

Quanto à teoria do orgasmo de Reich, mesmo sendo ela originada e referenciada na psicanálise, nunca foi aceita por Freud e seus seguidores. Segundo Albertini (1994, p. 40), “parece não haver dúvidas de que, em termos de construção teórica, Freud de maneira alguma chegou a aceitar a teoria reichiana do orgasmo”. No mesmo sentido, Briganti (1987, p. 115) comenta que “os psicanalistas não viriam a aceitar o vínculo feito por Reich entre as neuroses e a perturbação da genitalidade”. O próprio Reich reconhece este fato quando diz que “desde o começo a inclusão da função do orgasmo na teoria [psicanalítica] da neurose foi considerada um incômodo e tratada como tal.” (Reich, 1935/1995, p. 274). Permanece o debate quanto à validade desta concepção reichiana, mas este é um elemento que, se provado correto, seria também assimilável dentro da estrutura teórica da psicanálise. Note-se que muitos neo-reichianos não são defensores tão ferrenhos desta idéia quanto Reich (Boyesen 1986; Lowen 1982). Navarro (1996, p. 11), por exemplo, critica explicitamente a Bioenergética de Lowen por este motivo, dizendo que esta abordagem “não destaca a importância da função do orgasmo”.

2.3.3 O CARÁTER E A IMPORTÂNCIA DA FORMA

Algo semelhante ocorre com a teoria reichiana do caráter. Partindo das formulações de Freud, Jones e Abraham sobre o origem dos traços de caráter, Reich (1995, p. 150-155) expõe sua teoria de que o conjunto dos traços de caráter de uma pessoa constituiria uma formação integral com função de defesa psíquica, uma verdadeira couraça ou blindagem do ego. Segundo Wagner (2000, p. 46), Reich vê o caráter como uma estrutura complexa e unificada que é “... resultante e expressão de todo o desenvolvimento psicossexual (...) o caráter é visto como a forma típica e estruturada de ser do ego [e com isso] Reich patologiza o ego freudiano.” Com raras exceções , este conceito não foi incorporado pela psicanálise. Isso pode ter ocorrido pelas implicações políticas e sociais da teoria do caráter (idem, p. 50-51); pela proposta clínica dela decorrente (a análise do caráter), que questionava a ortodoxia ao propor a valorização da forma de agir como material analítico; ou ainda por uma simples discordância quanto à validade desta teoria.

Um aspecto específico dessa abordagem clínica ainda hoje é ponto de debate na psicanálise. Conforme Martinez (1993), vemos nos relatos clínicos de Freud e outros autores a valorização de aspectos observados do comportamento dos analisandos. Por outro lado, mantém-se a posição analítica atrás do divã como fundamental, dado que “... a disposição que exclui o olhar tem assim uma função técnica precisa, a de criar condições favoráveis para que se instale a situação analítica propriamente dita” (Mezan, cf. cit. em Martinez, 1993, p. 18). Deste modo, a visibilidade do analisando ora ajuda (para a obtenção de material analítico), ora atrapalha (por contrariar o exercício da atenção flutuante). Martinez mostra então como é variável a valorização clínica do universo visual, com Freud dando pouca ênfase a este tipo de material, Ferenczi dando grande valor ao mesmo, e Reich fazendo disto o centro de sua abordagem.

2.3.4 OUTRAS DIVERGÊNCIAS PSICANALÍTICAS

Um outro tema é a teoria reichiana das pulsões. Enquanto Freud fundamenta sua visão do aparelho psíquico a partir de uma dualidade, de um antagonismo pulsional, Reich concebe a existência apenas de pulsões do id, que seriam manifestações de necessidades biológicas, a favor da vida, portanto. Sob a pressão do mundo externo e do superego, o ego teria a capacidade de colocar uma pulsão contra outra, num entrelaçamento complexo que seria a base da dinâmica psíquica.

Outras questões sobre as quais Reich tem um ponto de vista diverso daquele de Freud são a teoria da angústia (Reich 1984, p. 120-124) e a visão sobre a cultura e a civilização (idem, p. 166-213).

3.4 PARA ALÉM DOS PRINCÍPIOS DA PSICANÁLISE

É no desenvolvimento das idéias de Reich a partir de meados da década de 1930 que iremos encontrar as diferenças realmente significativas. Ele afastou-se bastante do referencial psicanalítico, trilhando caminhos que o levaram para algo muito diverso. Aqui sim podemos entender suas afirmações de 1952 (ver item 2), considerando-se como alguém que não tinha mais nada a ver com a psicanálise.

3.4.1 A ORGONOMIA

Albertini (1994, p. 38) afirma que “a principal ligação do pensamento reichiano com a psicanálise freudiana deve ser buscada no âmbito do ponto de vista econômico” , e “tanto a preocupação quantitativa quanto a busca da base orgânica da libido caminham na direção de uma concepção de energia sexual como algo real e não apenas como um constructo teórico”.

Desde o início Reich valorizou fortemente a idéia de uma energia vital, como se pode ver em seus primeiros escritos, que incluíam um estudo de 1922 sobre “O Conceito de Pulsão e Libido de Forel a Jung” (Reich 1975b), e outro de 1923 “Sobre a Energia das Pulsões” (Reich 1975c). Conforme Albertini (1994, p. 38), “desde o início existe no pensamento reichiano a hipótese de um princípio energético”.

Segundo Reich, em 1952, para Freud, “uma das suas maiores descobertas era que uma idéia não é ativa em si mesma, mas porque tem uma certa catexis de energia, isto é, tem uma certa quantidade de energia que lhe está associada. Nisto, ele tinha unido o quantitativo e o qualitativo. Fez o mesmo quando afirmou que a neurose tinha um núcleo somático. Mas o quantitativo, o ângulo da energia, era apenas um conceito. Não era realidade. Agora, enquanto a organização psicanalítica desenvolveu o ângulo qualitativo, isto é, as idéias, a sua interligação etc., eu retomei o ângulo da energia” (Reich 1979, p. 115-116).

A Orgonomia é apresentada por Reich como uma radicalização da teoria da libido de Freud, mas existe aí uma ruptura importante, pois levou a uma concepção vitalista (ver Rego 1990), antagônica ao que é aceito pela ciência atual, e que é algo bem diferente das concepções psicanalíticas.

Ao falar sobre a prevenção de neuroses, Reich nos dá um exemplo do quanto suas concepções relacionadas ao corpo e à bioenergia se distanciam dos conceitos psicanalíticos: “na prática, Eros ... significa se o útero da mãe está vivo ou inerte, se a mãe atinge ou não o orgasmo durante o coito, ... se o bico do peito da mãe está carregado orgonoticamente, isto é, se a bioenergia está a funcionar nessa zona, a fim de que ao procurar satisfazer seu desejo oral, a criança se agarre a algo que seja gratificante e não um choque” (Reich 1979, p. 67).

A Orgonomia, que em seu início poderia ser descrita como uma hipertrofia do aspecto econômico da metapsicologia freudiana, ganha contornos muito diferentes em anos posteriores, chegando a definições, formulações e propostas de intervenção estranhas à psicanálise, como se pode ver em obras como “Éter, Deus e o Diabo” e “Superposição Cósmica” (Reich 1973), e no capítulo XV do "Análise do Caráter" (Reich, 1995).

Assoun, em seu estudo dobre a epistemologia das idéias freudianas, aponta que o fundamento energético e quantitativo está presente desde o início dos trabalhos de Breuer e Freud, mantendo-se ao longo de todo o desenvolvimento da psicanálise em conceitos como investimento, descarga, ab-reação, quantum de afeto, libido (Assoun 1983, p. 198-200). Apesar disso, conforme este autor, Freud manteve-se dentro dos limites da corrente designada como mecanicismo energetizado ou energetismo mitigado, juntamente com Helmholtz, Fechner e outros. Tal corrente seria bastante distinta do energetismo radical de Mayer, Ostwald e Reich: “Freud jamais é levado pela tentação, inerente ao energetismo doutrinal, de exaltar a energia como princípio ativo supramecânico e de hipostaziá-la como suporte de uma visão do mundo. A energia ostwaldiana servia para fundar uma ontologia imaterial; a energia freudiana serve para designar uma característica processual” (idem, p. 207). Ou seja, haveria um corte epistemológico na passagem entre as concepções energéticas de Freud e as de Reich, uma diferença irredutível entre as formulações de ambos nesse campo.

3.4.2 O TRABALHO SOBRE O CORPO

A grande ruptura técnica vai se dar com a introdução da abordagem corporal por Reich. A psicologia freudiana é intensamente referenciada no corpo, porém a intervenção técnica passa primordialmente pela palavra. Quando Reich introduz o olhar, o toque, os exercícios, a respiração e a propriocepção, ele resgata aquilo que poderíamos chamar de uma “vocação corporal” da psicanálise, porém rompe com um ponto essencial da clínica analítica. Talvez se possa dizer que é uma clínica psicanaliticamente orientada, mas certamente já não é mais uma clínica psicanalítica.

Existem autores com opiniões diversas, como Wagner, que considera “o trabalho de abordagem corporal iniciado por Reich como um dos desdobramentos possíveis da clínica psicanalítica de Freud” (Wagner 1996, p. 71). Mas me parece mais de acordo com a realidade a existência de uma ruptura irrecuperável, pois se o psicanalista passar a olhar e tocar, não será mais um psicanalista (tal como eles se reconhecem e nós os reconhecemos); se o reichiano deixar de olhar e tocar, não será mais reichiano. Deste modo, a relação com o corpo na clínica parece não admitir que se possa chamar de psicanálise a prática do psicoterapeuta corporal. Refiro-me aqui principalmente à psicanálise enquanto instituição, enquanto movimento organizado e reconhecido socialmente. Enquanto teoria sobre o psiquismo ou um campo do saber, é possível afirmar-se que somos psicanalistas se examinarmos nossas crenças a partir daquilo que o próprio Freud definiu como psicanálise (ver discussão em Wagner, 1996, p. 88-98).

3.4.3 A AUTO-REGULAÇÃO

Há uma outra ruptura importante no campo teórico quando Reich integra às suas formulações o conceito de auto-regulação. Conforme Bellini (1993, p. 47-55), desde o início de sua carreira, Reich teve um forte interesse pela biologia e pela sexualidade, tendo inclusive sido isto que o levou a entrar em contato com Freud. Manteve sempre o interesse pela biologia, e encontram-se elementos iniciais dessa concepção em seus escritos a partir de 1927 (Albertini 1994, p. 67). Mas foi após a ruptura com a psicanálise, em 1934, que Reich retomou de maneira mais intensa a fundamentação biológica, tendo isso levado-o cada vez mais à utilização do conceito de auto-regulação como elemento central de suas concepções.

Conforme Bellini (1993, p. 54), “auto-regulação é a ‘sabedoria do corpo’, reações e ritmos coordenados que permitem o equilíbrio dinâmico do corpo. Em Reich, auto-regulação não será um conceito formalizado, será um axioma, um princípio que se tornará central em seu pensamento”.

Albertini (1994, p. 68-9) partilha da mesma opinião, dizendo que “pode-se observar um princípio subjacente, fundamental, básico, primário, que organiza e dá sustentação teórica ao pensamento reichiano. Esse princípio é o da auto-regulação, uma espécie de competência espontânea, visceral, da própria vida. Tal concepção vai substituir as teses psicanalíticas que também faziam parte do conjunto das idéias de Reich até este momento [anos 30]. Nesse sentido, o conceito de auto-regulação passa a ser hegemônico no arcabouço teórico reichiano”.

No mesmo sentido, Dadoun (1991, p. 35) comenta que “o princípio de auto-regulação, proposto com uma constância excepcional por Reich – e que ocupa um lugar central no pensamento dele – dispõe de uma base biológica sólida e praticamente irrefutável”. Assim, “tudo acontece como se o afrouxamento da couraça caracterial liberasse uma espécie de competência espontânea, uma aptidão para autodeterminar-se, aniquilada, atrofiada ou neutralizada pela influência das instituições sociais e dos modelos culturais. Reich vem a formular nestes termos o objetivo terapêutico: retirar a energia das inibições morais e substituí-las pela auto-regulação libidinal” (idem).

Essa guinada de Reich é algo genial, pois alarga os horizontes do trabalho psicoterápico, abrindo as portas para o terreno da biologia e da fisiologia. O conceito de auto-regulação nos aproxima do orgânico, facilitando-nos dialogar, compreender e assimilar os enormes avanços conquistados nesse campo, como as neurociências, a biologia molecular, a genética e a psicologia evolutiva. É impossível deixar de admirar a capacidade de Reich de, já nos anos 30, elaborar formulações que permanecem válidas e atuais, e que nos deixam mais capacitados a estar em sintonia com o que se produz de mais avançado em termos de pesquisas sobre a mente e a consciência a partir do referencial biológico.

Porém, ao mesmo tempo que abriu algumas portas, Reich fechou com isso outras em relação à psicanálise, para a qual o conceito de auto-regulação é um corpo estranho. Constitui-se aqui, portanto, mais um elemento de ruptura com o referencial freudiano.

4. CONCLUSÕES

Uma primeira conclusão é que a síntese entre psicoterapia reichiana e psicanálise é um projeto difícil, exigindo um estudo e um debate aprofundados. Questões complexas, como a discussão da teoria do orgasmo de Reich, da teoria da pulsão de morte de Freud e das formulações de ambos sobre a angústia, deverão ser examinadas a fundo caso se queira uma integração entre estas abordagens. Porém ainda mais difícil e complexa será a discussão para integrar concepções tão estranhas entre si quanto a psicanálise, de um lado, e a Orgonomia reichiana e a idéia de auto-regulação, de outro. Do mesmo modo, a proposta clínica reichiana de intervenção corporal também irá requerer muitos ajustes em relação à proposta psicanalítica tradicional, frontalmente contrária a isto.

Neste ponto, cabe a pergunta: não seria melhor deixar de lado a psicanálise, como fez o próprio Reich, e buscar o aprimoramento da psicoterapia reichiana de outras formas? Muitos autores do campo reichiano parecem seguir nesta direção, pouco ou nada enfatizando a teoria psicanalítica em sua apresentação das idéias reichianas (Gaiarsa 1984, 1982; Mann 1989; Raknes 1988). Claro que é válida a busca de outros caminhos de desenvolvimento, e uma das características positivas do pensamento reichiano é a sua abertura e amplitude, permitindo conexões teóricas e práticas das mais variadas. Entretanto, acredito que o diálogo com a teoria psicanalítica continua sendo essencial, apesar das dificuldades e dos desafios apontados, e diversos autores têm dado importância a isto (Baker 1980; Boadella 1997; Boyesen 1986; Briganti 1995, 1994, 1987; Cerri 1994, 1993; Cornell 1998; Lowen 1982; Rego 1996, 1994, 1992; Wagner 2000, 1996).

O ponto crítico, a meu ver, é que parece faltar um embasamento psicológico bem fundamentado às diversas escolas de psicoterapia corporal inspiradas na obra de Reich. Soa um pouco estranho dizer isso de uma maneira tão radical, mas me parece que Reich e outros pesquisaram o reino do somático e chegaram a descobertas fantásticas, criando intervenções que funcionam para além da palavra e do simbólico. Porém, nesse desenvolvimento, a questão da construção de uma psicologia profunda que fundamentasse e organizasse essas formulações acabou ficando um pouco para trás. Segundo o próprio Reich afirmou em 1944 (p. 11), “a economia sexual não é uma psicologia e sim uma teoria biofísica da sexualidade.” Um prenúncio disso pode ser visto já em 1935 quando ele diz que “o orgasmo não é um fenômeno psíquico (...) no entanto, é o problema central da economia psíquica.” (Reich, 1995, p. 274). Houve uma ruptura com a psicanálise, mas não se construiu uma outra teoria psicológica que pudesse substituí-la. Restou algo como uma psicanálise um tanto rasa e esquemática a emoldurar a visão de mundo da psicoterapia reichiana. Muitos autores do campo reichiano buscaram, nos últimos anos, como já foi citado, preencher esta lacuna mas, na minha opinião, existe ainda um longo caminho a ser trilhado.

Reich diz que sua abordagem vai além do período verbal e “a psicanálise não sabe nada sobre isto. Não pode saber. Não é uma censura. Não quero dizer que seja nociva ou insuficiente. Quero dizer que é uma psicologia. E a psicologia tem que se cingir à psicologia, ao trabalho e às idéias psicológicas” (Reich 1979, p. 39). “A psicanálise é uma psicologia de idéias, enquanto a orgonomia é uma ciência da energia física”. (idem, p. 118).

Surgiram formas de intervenção que funcionam a nível psíquico e emocional de maneira um tanto independente do processamento simbólico e cognitivo , como inúmeras formas de massagem (Boyesen 1986), exercícios de bioenergética (Lowen e Lowen 1985), grupos de movimento (Gama e Rego 1994), actings (Navarro 1996), técnicas respiratórias (Gama e Rego 1994; Lowen e Lowen 1985) etc. Acredito que, por muito tempo, foi tão fascinante perceber-se sua eficácia, que aos poucos o desenvolvimento do campo da psicoterapia corporal foi se concentrando na descoberta e desenvolvimento de novas formas de intervenção corporal. Paralelamente, parece ter havido um certo descuido do pensar, do falar, da razão, do simbólico, enfim da psicologia.

Reich afirma em 1944 que “... o economista sexual e vegetoterapeuta é essencialmente um bioterapeuta e não mais um psicoterapeuta.” (Reich, 1944/1995, p. 10). Comenta também que “a solução dos problemas da psicologia está fora da esfera da psicologia. Por exemplo, um simples bloqueio de pulsação orgonótica na garganta torna compreensível, de forma simples, o mecanismo mais complicado de sadismo oral” (idem, p.278). Em 1948 afirma que “... o orgonoterapeuta, que está treinado a ver um paciente antes de mais nada como um organismo biológico (...) o aspecto psicológico do sofrimento emocional continua a ser importante e indispensável; já não é, contudo, o aspecto mais importante da biopsiquiatria orgonômica (...) na orgonoterapia procedemos bioenergeticamente, e não mais psicologicamente.” (Reich, 1995, p. 11-12). “Na orgonoterapia, nosso trabalho concentra-se nas profundezas biológicas, no sistema plasmático, ou, como dizemos tecnicamente, no núcleo biológico do organismo. Este, como fica logo evidente, é um passo decisivo, porque significa que deixamos a esfera da psicologia, e da psicologia ‘profunda’, e entramos na área das funções protoplasmáticas, indo até mesmo além da fisiologia dos nervos e músculos.” (idem, p. 331). “A orgonoterapia, ao contrário de todas as outras formas de tratamento, tenta influenciar o organismo não por meio da linguagem humana, e sim levando o paciente a se expressar biologicamente (...) a biopatia se coloca fora da esfera da linguagem e das idéias. Daí que o trabalho orgonoterapêutico sobre a biopatia humana fica essencialmente fora da esfera da linguagem humana.” (ibidem, p. 334).

Autores do campo reichiano que propuseram a retomada importância dos aspectos psicológicos em seu trabalho parecem discordar dessa ênfase unilateral nos aspectos somáticos. Por exemplo Lowen (1982, p. 36) comenta que, “como analista, Reich enfatizou a importância da análise do caráter. No meu tratamento com ele, esse aspecto da terapia foi de alguma forma minimizado. Foi ainda mais reduzido quando a vegetoterapia caractero-analítica foi transformada em terapia orgônica. Apesar de que o trabalho de análise do caráter tome muito tempo e paciência, este me parece indispensável para um sólido resultado.”

Note-se que este tipo de abordagem não foi específico das psicoterapias reichianas. A psiquiatria ao longo do século XX caracterizou-se em grande medida pela ênfase dada ao tratamento de doenças mentais a partir de intervenções somáticas. A psicofarmacologia, a aplicação de correntes elétricas, e mesmo a secção de tratos nervosos, são em geral o tratamento de escolha, por serem considerados mais efetivos do que as psicoterapias. Em outras palavras, o biológico como meio essencial de cura do distúrbio psicológico, relegando-se para um segundo plano a compreensão psicológica e o tratamento psicológico dos distúrbios mentais. Ou seja, o campo reichiano não foi o único a biologizar o psiquismo.

Levada ao extremo, essa tendência levaria a que deixássemos de ser psicoterapeutas corporais, tornando-nos simplesmente terapeutas corporais. Ressalte-se que há um grande valor neste segundo tipo de profissional. São pessoas que podem exercer uma atividade útil e eficaz, que podem ser de grande valia em inúmeros casos, seja como atividade associada à psicoterapia ou como algo independente. Acredito inclusive que uma das boas heranças do movimento reichiano seja ter criado este tipo de profissional, ampliando o espectro de possibilidades de combate ao sofrimento humano. Mas é algo diferente de uma psicoterapia corporal. Ao falarmos em psicoterapia corporal, estamos pretendendo dar conta de uma abordagem integrada e não-dissociada da mente e do corpo, do funcionamento uno das dimensões física e simbólica do ser humano. E para isso é preciso um refinamento na compreensão do somático e do psíquico, um domínio das intervenções técnicas em ambos os campos. É nesse ponto, na dimensão do simbólico, do psíquico, que entra fundamentalmente, a meu ver, a contribuição que a psicanálise pode dar à psicoterapia corporal.

5. UM POSSÍVEL CAMINHO

Talvez um dia os reichianos (ou pelo menos alguns deles) sejam considerados como um tipo específico de psicanalista, tal como existem os lacanianos, os kleinianos e outros. O ramo desmembrado voltaria a se juntar à árvore principal, as convergências e similaridades sendo muito mais fortes do que as diferenças.

Outra possibilidade é que a psicoterapia reichiana progrida formidavelmente na sua especificidade, e os psicanalistas de algum modo se convençam de que Reich é que estava certo na sua ruptura com Freud, aderindo em massa às concepções teóricas e clínicas da psicoterapia corporal.

Acredito que ambos os cenários descritos são bem pouco prováveis, e gostaria de expor uma outra possibilidade que julgo mais promissora: seria possível um intercâmbio entre a psicanálise e a teoria reichiana, mas este ocorreria de maneira unidirecional, ou seja, pode-se integrar elementos psicanalíticos no campo reichiano, mas o caminho inverso é bastante difícil e tortuoso. Pode-se fazer tortas de maçã a partir de maçãs, mas não se pode fazer maçãs a partir de tortas de maçã.

Algumas analogias podem ajudar. Uma é a do milho e da pipoca. São a mesma substância, mas uma transformação expansiva se deu, algo mudou. Há uma ampliação de universo sensorial na psicoterapia reichiana: além da audição, nós vemos (leitura corporal), nós tocamos (tato), nós utilizamos a propriocepção de maneira importante. Se couber tudo isso dentro da psicanálise, ela não será mais psicanálise, como já afirmado acima. Haveria uma irreversibilidade no processo.

Outra analogia é a relativa aos judeus e cristãos. O cristão aceita os 10 mandamentos, o Genesis, os salmos, e todo o Velho Testamento, mas ele não é mais judeu. O judeu não o reconhece judeu, ele não se reconhece judeu. Os rituais e costumes são diferentes e, apesar de tudo, há uma tradição judaico-cristã. A ninguém de bom senso ocorreria forçar os cristãos a se converter ao judaísmo e nem vice-versa. É bom que haja diálogo entre ambos? Sem dúvida, desde que haja respeito à especificidade de cada um. Da mesma maneira, os reichianos podem beneficiar-se da leitura do Velho Testamento da Psicanálise, podem aceitá-lo, valorizá-lo, sem precisar converter-se a algo que não são.

Acredito que é bobagem ficar buscando reconhecimento de paternidade. O exame do que poderíamos chamar de “DNA ideológico” confirmará a origem, sem dúvida: veja-se, por exemplo, o já citado levantamento feito por Wagner (1996, p. 88-98), a partir de textos de Freud que definem o que é e o que não é psicanálise, concluindo que a teoria reichiana concorda com todos os aspectos essenciais ali definidos. Apesar disso, como afirma o próprio Wagner (idem, p. 44) não é o caso de buscar reintegrar Reich ao IPA ou de resgatar a carteirinha de psicanalista de Reich.. O que importa é a herança (intelectual), e felizmente isso não é tão difícil: os livros estão aí, os mestres estão disponíveis ...

Na minha visão, a atitude correta é a antropofagia, no sentido simbólico indicado pelos modernistas brasileiros. Não vamos ser como os psicanalistas, não vamos convertê-los e nem ignorá-los. Vamos “devorá-los” no que têm de bom e que nos falta.

Proponho aqui uma hipótese sobre a relação entre as idéias de Freud e Reich, à qual dou o nome de “teoria da pasta de dente”. A proposta reichiana seria como a pasta de dente que saiu do tubo da psicanálise. Não é possível, ou pelo menos é muito difícil e forçado, recolocar a pasta de volta no tubo. Mas é possível, desejável e útil, espremer mais um bom tanto o tubo da psicanálise para obter mais pasta reichiana de boa qualidade. A “pasta” a que me refiro seria a fundamentação psicológica cuja falta leva ao risco de superficialidade na compreensão dos distúrbios psíquicos, e conseqüentemente também na intervenção clínica. Uma psicoterapia profunda só é possível quando se conta com uma compreensão psicodinâmica da estrutura psíquica e do processo analítico.



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